Da possibilidade da aplicação da Teoria Maior no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica em Processos Trabalhistas.

Por Gabriella Miraíra Abreu Bettio

A desconsideração da personalidade jurídica é um assunto de suma importância para o processo do trabalho. Sustenta-se isso, pois em muitas situações o patrimônio dos sócios das empresas é atingido a fim de trazer eficácia a decisões judiciais. Contudo, questiona-se qual o limite da supressão da personalidade jurídica, que se sustenta por ser uma forma de garantir o pagamento de créditos trabalhistas, tendo em vista a sua abusividade.

A priori, urge explicitar que, segundo Flávio Tartuce,

“as pessoas jurídicas, também denominadas de pessoas coletivas, morais, fictícias ou abstratas, podem ser conceituadas como sendo conjunto de pessoas ou de bens arrecadados, que adquirem personalidade jurídica própria, por uma ficção legal” (…) “a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres a ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo, ou seja, sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas naturais que a compõem, em outras palavras há uma autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios e administradores. Em regra, os seus componentes somente responderão por débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual dependendo do tipo societário” (TARTUCE, 2018, p. 245 e 269).

Logo, compreende-se que a personalidade da pessoa jurídica se distingue da de seus membros e sócios. Há, contudo, um instituto que visa mitigar eventuais abusos e fraudes cometidos pela pessoa jurídica e seus administradores, à própria sociedade ou a terceiros, denominado Disregard of legal entity doctrine, ou, em português, Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade.

Sobre essa teoria, tem-se que ela discorre sobre uma medida processual em que o juiz determina a inclusão dos sócios ou administradores da pessoa jurídica no polo passivo da demanda. Intenciona-se, com isso, obrigar que estes respondam, com seu patrimônio particular, pelas dívidas da empresa no caso de insolvência. Contudo, tal aplicação, se descometida, viola o princípio da autonomia das pessoas jurídicas.

Sob essa ótica e com base na pesquisa de Rolf Serick, que buscava delimitar os critérios para tal afastamento, Fabio Ulhoa Coelho chegou a quatro requisitos gerais para suprimir a personalidade jurídica. Segundo ele,

(i) o juiz diante de abuso de forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica; (ii) não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos; (iii) aplicam-se à pessoa jurídica as normas sobre capacidade ou valor humano, se não houver contradição entre os objetivos destas e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica. (COELHO, 2008, p. 37-38).

Ainda neste contexto, tem-se que essa medida pode ser aplicada de duas formas distintas, denominadas de Teoria Maior e Menor da desconsideração da personalidade jurídica. Cabe, pois, discorrer sobre elas. Respectivamente, tem-se que a primeira “condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto”, como pontua Suzanna Lapenne Pacca e Luiz Osório Panza (2015). Acerca da manipulação fraudulenta, cabe a leitura do art. 50 do Código Civil, que define que

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso (BRASIL, 2002).

Por sua vez, a segunda compreende ser viável a desconsideração da PJ (personalidade jurídica) em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio do sócio por obrigação social. Tem-se, pois, que o afastamento não se condiciona a nada, além da insatisfação de crédito perante a sociedade.

Diante disso, a distinção entre as teorias é que na primeira há uma clara distinção entre o instituto jurídico da desconsideração e o da responsabilização por ato de má gestão, enquanto na segunda “não havendo bens por parte da sociedade, atribui-se aos sócios a obrigação da pessoa jurídica, demonstrando haver solvência por parte dos sócios” (PACCA; PANZA, 2015, p.3).

No âmbito trabalhista, amparado no artigo 28 do CDC, encampou-se a Teoria Menor, de modo a sustentar que, em razão da hipossuficiência do trabalhador, da dificuldade que apresenta o reclamante em demonstrar a má-fé do administrador e do caráter alimentar do crédito trabalhista, a execução dos bens do sócio é adequada, ainda que se viole o princípio da autonomia da pessoa jurídica.

Não muito raro, nos deparamos com decisões da Justiça do Trabalho incluindo o sócio no processo de execução, apenas sob o argumento de que o inadimplemento seria fato suficiente para aplicação do instituto.

Logo, no âmbito da Justiça do Trabalho, questiona-se o porquê da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica pautando-se somente na insolvência. O que se compreende é que esta não deve ser compreendida, de imediato, como um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos colaboradores, de forma análoga ao §5º do art. 28 do CDC, uma vez que essa compreensão é abusiva e viola princípios norteadores do Direito Empresarial.

A violação aos bens patrimoniais dos sócios pautada unicamente na insolvência não garante à supressão da hipossuficiência do empregado. O que se nota é, infelizmente, uma postura acomodada e inadequada do judiciário em sentenciar empresas não mediante uma análise minuciosa da demanda, mas sim com a praticidade de se aplicar, de forma padronizada, o mais simples, neste caso, a Teoria Menor.
Como pontua Vítor Fortini Düvelius (2017) sobre essa desconsideração,

Sua característica invasiva, na medida em que adentra aos bens particulares dos sócios para satisfação das obrigações contraídas pela sociedade, revela-se verdadeiramente como remédio amargo, o que exige, por isso, meticulosa análise do caso concreto (DÜVELIUS, 2017, p. 51).

De modo objetivo, tem-se que o uso indiscriminado desse instituto, acrescido da insegurança jurídica advinda da ausência de critérios objetivos não incentiva a solvência de créditos trabalhistas por parte da empresa, mas sim gera uma insegurança aos indivíduos que dela participam, como pontua Albergaria Neto ao afirmar que tal uso abusivo faz com que “nos dias atuais exista uma crise da personalidade jurídica das sociedades empresárias” (NETO, CATEB, 2017).

Lado outro, nos parece que parte do judiciário trabalhista não tem observado as mudanças trazidas pela Lei 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, que alterou a redação do artigo 50 do Código Civil.

Com a vigência da nova lei, na nossa opinião, a Teoria Menor torna-se inaplicável no processo laboral.

Isto porque, o art. Art. 1º, §1º da mencionada lei, dispõe que “O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação […]” (grifamos).

Nesse sentido, por exigência normativa, há que se aplicar a Teoria Maior para o deferimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, haja vista que o texto legal menciona expressamente que a Lei 13.874/2019 será aplicada na interpretação do direito do trabalho. Ocorre que, o que se nota, é que o entendimento jurisprudencial adotado é ainda pela aplicação da Teoria Menor, inobstante as disposições trazidas com a Lei n º 13.874/2019.

Outrossim, além de se aplicar a Teoria Menor indiscriminadamente, não é incomum nos depararmos com decisões, sobretudo a de Juízes de 1ª instância, não observando o procedimento próprio da instauração do incidente, previsto no artigo 133 a 137 do CPC. A não observância do trâmite legal, gera, por certo, ofensa ao contraditório e pode resultar na nulidade de todos os atos a partir de tal decisão.

Nesse contexto, a simples insolvência ou inexistência de bens do devedor não deve ensejar abusos mascarados de supressão da hipossuficiência de trabalhadores, sendo certo que deve restar comprovada o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.

O que se visa não é a inaplicabilidade do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, mas sim seu uso adequado. Intenciona-se, com isso, favorecer a segurança jurídica, contribuindo, para o respeito à norma sem que, para isso, seja necessário culpabilizar e prejudicar os sócios de uma empresa.

O PR Lasmar & Associados se coloca à disposição para quaisquer esclarecimentos sobre o tema.