A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) tem se estabelecido como uma alternativa de gestão para os clubes esportivos, buscando promover maior profissionalização, transparência e sustentabilidade financeira.
No entanto, a transição de um clube tradicional para uma SAF levanta questões jurídicas complexas.
Em particular, a responsabilidade pelos créditos devidos pelo clube original tem sido objeto de debates e controvérsias.
O tema em debate é crucial tanto para os credores quanto para os clubes que buscam adotar o modelo da SAF.
O entendimento adequado dessa responsabilidade é essencial para garantir a segurança jurídica e a proteção dos direitos de todas as partes envolvidas.
Portanto, este estudo busca contribuir para a compreensão e o debate em torno dessa responsabilidade, oferecendo uma breve análise sobre as recentes decisões sobre o tema no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho.
Primeiramente, é importante transcrever os dispositivos da Lei 14.193/2021 que tratam sobre o tema:
Art. 2º A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:
I – pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol;
II – pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol;
III – pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos I e II do caput deste artigo:
I – a Sociedade Anônima do Futebol sucede obrigatoriamente o clube ou pessoa jurídica original nas relações com as entidades de administração, bem como nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol; e
II – a Sociedade Anônima do Futebol terá o direito de participar de campeonatos, copas ou torneios em substituição ao clube ou pessoa jurídica original, nas mesmas condições em que se encontravam no momento da sucessão, competindo às entidades de administração a devida substituição sem quaisquer prejuízos de ordem desportiva.
§ 2º Na hipótese do inciso II do caput deste artigo:
I – os direitos e deveres decorrentes de relações, de qualquer natureza, estabelecidos com o clube, pessoa jurídica original e entidades de administração, inclusive direitos de participação em competições profissionais, bem como contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol serão obrigatoriamente transferidos à Sociedade Anônima do Futebol;
(…)
Art. 9º A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei.
Parágrafo único. Com relação à dívida trabalhista, integram o rol dos credores mencionados no caput deste artigo os atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol.
Art. 10. O clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente:
I – por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei;
II – por destinação de 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista.
Art. 11. Sem prejuízo das disposições relativas à responsabilidade dos dirigentes previstas no art. 18-B da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, os administradores da Sociedade Anônima do Futebol respondem pessoal e solidariamente pelas obrigações relativas aos repasses financeiros definidos no art. 10 desta Lei, assim como respondem, pessoal e solidariamente, o presidente do clube ou os sócios administradores da pessoa jurídica original pelo pagamento aos credores dos valores que forem transferidos pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme estabelecido nesta Lei.
Art. 12. Enquanto a Sociedade Anônima do Futebol cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas, com relação às obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol.
Pois bem, diferentes decisões têm sido adotadas pelos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) em relação a essa matéria, gerando debates e divergências sobre a interpretação e aplicação da referida lei.
No presente artigo, analisar-se-á decisões provenientes do Eg. TRT da 3ª Região, tendo em vista se tratar do Tribunal Regional do Trabalho com o maior número de acórdãos sobre o tema.
Acórdão 1: No caso julgado em 16/12/2022, pela Segunda Turma (AP 0010240-19.2022.5.03.0018), foi adotada a interpretação de que a SAF responde pelas dívidas trabalhistas, mesmo anteriores à sua constituição, desde que o empregado esteja vinculado diretamente ao departamento de futebol. Essa decisão fundamenta-se no art. 9º da Lei 14.193/21.
Acórdão 2: Em contrapartida, a Quinta Turma, em 17/08/2022 (ROT: 0010138-15.2022.5.03.0109), adotou uma interpretação restritiva da responsabilidade da SAF. Segundo a Eg. Turma, a SAF constituída a partir da cisão do departamento de futebol do clube original e transferência de seu patrimônio relacionado à atividade futebol não responde pelas obrigações do clube original, anteriores ou posteriores à data de sua constituição. Nesse caso, a obrigação da SAF limita-se ao repasse de receitas ao clube original, conforme o art. 10 da Lei 14.193/21.
Acórdão 3: Outro precedente relevante é o da Oitava Turma, em 08/02/2023 (ROT: 0010533-40.2022.5.03.0001). Nessa decisão, entendeu-se que a SAF deve responder pelas obrigações trabalhistas do departamento de futebol da pessoa jurídica original que a constituiu. No entanto, sua responsabilidade está sujeita ao disposto no art. 12 da Lei 14.193/21, sendo passível de constrição de patrimônio ou de receitas apenas em caso de descumprimento dos repasses obrigatórios previstos no art. 10 da mesma lei.
Acórdão 4: Por fim, a Terceira Turma, em 28/11/2022 (ROT: 0010208-56.2022.5.03.0004), adotou a responsabilidade solidária da SAF. Nesse caso, entendeu-se que a atividade da SAF está incluída no objeto social do clube réu, e a Lei 14.193/21 não revogou a legislação trabalhista, devendo haver compatibilização entre as legislações. Assim, aplicam-se também os dispositivos do art. 10 e 448 da CLT em relação à sucessão de empregadores.
Pois bem, parece-nos que o Acórdão 1 está mais condizente com o disposto na Lei 14.193/2021.
É importante destacar que o art. 10 da Lei 14.193/2021 não trata da exceção mencionada no art. 9º. Ele aborda a regra geral, ou seja, que “o clube ou pessoa jurídica original é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol”.
Vejamos separadamente o que o art. 9º da referida lei estabelece:
A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição,
exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social.
Portanto, no caso analisado no acórdão 1, estamos diante da letra B, que representa a exceção à regra.
Isso significa que a SAF é responsável pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, desde que se refiram às atividades específicas do seu objeto social, ou seja, obrigações relacionadas a atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal esteja diretamente ligada ao departamento de futebol.
O § 2º do art. 2º da Lei 14.193/2021, por sua vez, dispõe que na hipótese da SAF for constituída na forma do inciso II, “os direitos e deveres decorrentes de relações, de qualquer natureza, estabelecidos com o clube, pessoa jurídica original e entidades de administração, inclusive direitos de participação em competições profissionais, bem como contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol serão obrigatoriamente transferidos à Sociedade Anônima do Futebol”.
A lei estabelece que a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) sucede obrigatoriamente a associação nas relações contratuais, de qualquer natureza, com atletas profissionais do futebol.
Dessa forma, de acordo com a disposição expressa na lei, a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) criada por meio da transformação (art. 2º, I) ou cisão (art. 2º, II) sucede o clube ou pessoa jurídica original em todas as relações contratuais com os atletas profissionais de futebol.
Além disso, no caso da SAF constituída por meio da cisão (inciso II), ela também assume os direitos e deveres decorrentes de quaisquer relações, incluindo contratos de trabalho relacionados à atividade do futebol.
Diante das diferentes decisões adotadas pelos Tribunais Regionais do Trabalho em relação à responsabilidade das Sociedades Anônimas de Futebol pelos créditos trabalhistas devidos pelas associações, nota-se a existência de divergências interpretativas em relação à Lei 14.193/21.
Enquanto algumas decisões adotam uma responsabilidade ampla, outras impõem limitações ou condicionam a responsabilidade ao cumprimento de determinadas condições.
Essa divergência destaca a necessidade de uma análise aprofundada e de uma uniformização jurisprudencial para a correta aplicação da lei e a garantia dos direitos dos trabalhadores envolvidos no contexto das Sociedades Anônimas de Futebol, bem como uma maior segurança jurídica aos clubes que buscam adotar o modelo da SAF e seus pretensos investidores.
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